Isso não é um brasão!

Hoje você vai aprender o que não é um brasão.

Como você deve saber, Heráldica é a prática do estudo, confecção e registro de símbolos muito especiais. Ela existe há mais de mil anos, e é mais antiga que todos os países atuais do mundo.

A heráldica surgiu na Europa, como uma evolução dos costumes de identificação dos povos daquele continente, misturando vários elementos dos nativos e dos conquistadores.

É importante que você entenda que, naquele tempo, não havia alguns conceitos que hoje nossos povos consideram básicos:

  • Não havia países organizados com fronteiras totalmente mapeadas, estruturados com províncias/estados, e cidades. As pessoas moravam em fazendas mais ou menos próximas, e se considerava “senhor” de um território aquele que fosse forte o suficiente para impedir que outra pessoa tomasse.
  • Não havia registro civil, ou seja, os senhores só tinham uma “estimativa” de quem morava em seus territórios, mais ou menos. Além disso, não havia conceitos como “nacionalidade”, e uma pessoa só era considerada parte de um grupo se fosse visualmente da mesma etnia, ou conhecida dos que viviam em volta.
  • Não havia sobrenomes, como entendemos hoje. As pessoas, principalmente os plebeus (e os comerciantes que surgiram depois), eram identificados apenas por apelidos, ou pelo nome do lugar de onde vinham.

Em meio a esse cenário, havia a classe dos nobres. Pessoas de poder, vindas de linhagens antigas e respeitadas, que herdavam não apenas o dinheiro e a posse, mas também os símbolos que reforçavam essas tradições na cultura europeia.

As famílias de nobres eram (são) muito preocupadas em manter o registro de suas longas linhagens, deixando suas origens bem claras, como uma forma de apaziguar disputas de poder. Assim, a necessidade de criar um sistema de identificação surgiu bem cedo, para esta classe social.

Além disso, o sistema precisava ser muito rígido, como os métodos de identificação dos dias de hoje, para evitar transgressões e falseamentos. Por isso as leis heráldicas são tão severas e complexas.

cartões
A heráldica se popularizou no Brasil graças ao uso de armas em coleções relacionadas aos sobrenomes. Mas, infelizmente, a maioria são equivocados, como você vai aprender agora.

“Eu adoro brasões…”

“Ok, Luigi, legal. Mas o que isso tem a ver com o brasão?”, eu escuto você resmungando. Te conheço, eu sei. Mas primeiro você precisa entender o contexto.

No começo, apenas as casas nobres tinham direito a receber um símbolo. Isso mesmo que você leu: receber. Uma pessoa não podia (e não pode) assumir o símbolo para si mesma, ao invés disso devendo recebê-lo de seu senhor, ou então herdá-lo de seu pai. É semelhante ao que acontece, hoje em dia, com as nossas numerações de documentos oficiais, e com os nossos nomes e sobrenomes, que só podem ser mudados com muita dificuldade.

Agora você entende a importância desse símbolo, principalmente naquele tempo, onde ele podia transformar completamente a maneira como os outros te tratavam.

Esse símbolo especial heráldico é chamado de brasãoescudo“, ou então de “armas“.

As armas de uma pessoa, família ou reino são compostas de um símbolo pintado em um campo, o mais simples possível, para que ele possa ser reconhecido à distância.

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Quando você pesquisa “brasão” no Google Imagens, encontra uma mistura de designs inventados, como este, e cotas de armas. Nenhum dos casos é correto, porque ambos não são brasões.

“Pera! Isso não é um brasão!?”, você pergunta; e eu respondo: não.

Infelizmente, o passar do tempo ajudou a difundir diversos equívocos históricos (que eu gostarei muito de ajudar a tentar esclarecer, aqui no Vexillarium) nessa cultura, e este é um dos principais.

Como você já pode ter visto no nosso Glossário (que está sempre crescendo), por aqui é comum chamar as armas heráldicas de “brasão”, mas isso é incorreto. Um brasão não é um desenho, mas apenas um tipo especial de texto, que serve para descrever as armas de uma pessoa de acordo com as leis da Heráldica, de forma que a figura possa ser sempre desenhada sem erro.


(Uma pausa importante: No estudo acadêmico das linguagens, que é minha formação principal, existe um debate muito antigo, sobre o uso das palavras. Nessa briga ancestral, dois grupos se dividem por conta de um entendimento sobre o que é considerado “correto” quanto às palavras. Graças ao dinamismo das linguagens, e os processos culturais que os seres humanos atravessam, se movendo ou misturando culturas, as palavras vão mudando de forma e de conteúdo. É por isso que uma palavra antiga como “sinistro”, que era sinônimo de “esquerdo”; muda de significado e agora é o mesmo que “assustador”.

O lado dos gramáticos tenta fixar e difundir os significados das palavras, pra evitar que as pessoas usem os vocábulos de maneira incorreta, e tentar minimizar esse dinamismo, preservando o entendimento dos escritos antigos. Afinal, se mudarmos o que as palavras significam, não poderemos compreender os textos de nossos ancestrais.

Contra eles, temos os linguistas, que estudam e defendem a mutabilidade dos idiomas, focando mais nos processos de transformação que eles atravessam. É uma maneira de aprender como as línguas funcionam, como se elas fossem organismos vivos. Mesmo porque seria impossível tentar impedir as pessoas de criarem novas palavras, gírias, ou mesmo ressignificar as que já existem.

Desta maneira, nenhum dos lados está definitivamente certo, e o debate nunca terminará, mas é importante que você tenha essa questão em mente, quando falamos de equívocos históricos como a palavra “brasão”. Ainda que seja errado o uso popular desse termo, não adianta você sair estapeando todo mundo. O melhor que a gente pode fazer é explicar e ensinar, como eu estou fazendo aqui, e tenho certeza que você fará, também!)


“Emblema, você quis dizer?”

Pois bem, um brasão é apenas o texto que descreve as armas heráldicas (ou seja, o símbolo em um campo), de um ente armífero, ou seja, uma pessoa/família/escola/instituição/grupo/cidade/reino/etc que tenha direito ao seu uso.

O termo “brasão” vem do inglês blazon e do francês blason, que pode ser traduzido como “embrasonar”, ou seja, descrever as armas de uma pessoa. Por sua vez, essa palavra francesa vem do alemão arcaico blasen, que significa “anunciar”, “tocar a trompa”. Essa etimologia faz muito sentido, se você imaginar os anunciadores medievais, que tocavam instrumentos para avisar a chegada de pessoas importantes ao salão de seu senhor. A propósito, “anunciador” ou “arauto”, nesses idiomas antigos, é herald, de onde vem o nome de nossa arte.

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Estes são os arautos reais do Reino Unido, cumprindo sua obrigação no dia anual da Ordem da Jarreteira. Note que eles vestem tabardos ilustrados com as armas reais britânicas.

A cota de armas, esse símbolo especial, necessariamente precisa seguir as leis da heráldica, de forma que a maior parte das figuras que você deve ter pensado que eram “brasões”, na verdade são apenas “emblemas”, como os símbolos dos times de futebol, por exemplo. A maioria deles são apenas desenhos elaborados de acordo com critérios estéticos e o gosto de seus criadores.

Na heráldica, não importa o gosto do recipiendário ou do artista. Na verdade eles até importam, mas estão em nível terciário ou quaternário. As regras é que são o importante.

Obviamente, você provavelmente verá mais equívocos do que acertos, nessa questão. Mas não vamos perder a paciência, e prossigamos com o nosso trabalho.

“Como diferenciar um emblema comum de um que siga as regras da heráldica?”, você pergunta de maneira honesta, e eu fico muito satisfeito. Essa pergunta não tem uma resposta fácil, infelizmente. Principalmente porque, hoje em dia, existem leis heráldicas conflitantes de acordo com a tradição analisada.

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Quase 100% dos designs circulares, como este, são apenas emblemas.

Contudo, algumas regras básicas são universais, e você já poderá eliminar boa parte dos emblemas da sua lista mental de armas heráldicas:

  • Se o formato da figura central não for um escudo (existem vários deles, e eu prometo que você vai aprender sobre isso em breve), provavelmente não é heráldico;
  • Se a figura viola a Lei das Tinturas (“Esmalte sobre metal, ou metal sobre esmalte”), provavelmente não é heráldico;
  • Se a figura tem mais de um símbolo (que nós chamamos de “carga“) diferente dentro de um campo só, provavelmente não é heráldico;
  • Se a figura não foi criada por uma autoridade heráldica… provavelmente não é heráldico.

Na dúvida pesquise um pouco, ou pergunte pra outra pessoa. Pode me mandar mensagens pelo contato do site, ou comentando por aqui, que eu entro todo dia.

Resumindo a farra

“Luigi, mas que falação. Mostre essas coisas de maneira visual!”. Verdade, está na hora de exemplificar melhor. Vou usar as armas do extinto Reino da França, que estão entre as figuras que mais admiro nesta arte.

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Este não é o brasão da França.

Acima, você pode ver a lis, ou flor-de-lis, uma das cargas mais antigas e famosas, que representa uma flor de lírio. Uma carga é um símbolo que é utilizado na heráldica. Uma parte da cota de armas.

france
Este também não é o brasão da França.

Acima, a cota de armas do Reino da França. Foi criada em 1376, no século 14, chamada de Moderne, porque substituiu uma versão mais antiga. A cota de armas é o que você deve parar de chamar de “brasão”. Ela é composta de um escudo pintado com um campo; e uma carga, sobre esse campo.

France moderne
Não, não é o brasão da França.

Aqui, a cota de armas está levemente realizada, ou seja, ornamentada com um acessório a que faz jus. Como esse escudo pertencia a um rei, ele era frequentemente representado com a sua coroa.

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Adivinha: não é o brasão da França.

Nessa versão acima, a cota de armas está plenamente realizada, com diversos acessórios a que faz jus, como os tenentes e duas ordens. Ainda assim, as armas do reino (ou seja, a parte importante) são apenas compostas pelo escudo, seu campo e sua carga.

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Maravilhoso, eu sei. Mas não é o brasão da França.

Na restauração do Reino da França, em 1814 (no século 19), essa versão da cota de armas foi utilizada, fortemente realizada. Note que a forma do escudo mudou, mas permanece sendo o mesmo, segundo as leis da heráldica.

“Mas afinal, como é um brasão verdadeiro?”. Excelente questão, e simples de se responder. O brasão da França é:

De Blau, três flores-de-lis Or.

A primeira parte diz respeito ao escudo, que tem um único campo pintado de blau, o esmalte azul. Em seguida, explica que a carga desse campo são as três lises em or, o metal dourado. Este texto, lido de acordo com a gramática heráldica, permite que a pessoa entenda a configuração da cota de armas, que você viu lá em cima.

Em outra oportunidade, vamos nos aprofundar mais nesses fatores, a leitura e a composição do embrasonamento.

Emblemas não têm (e não seguem) as regras dessa gramática, e por isso são livres (e mais fáceis de encontrar). Abaixo, o emblema da Organização Mundial do Movimento Escoteiro, que muitas vezes é referido como “brasão”, de maneira equivocada:

wosm badge
Eles adotaram a lis porque a organização foi fundada em Paris, em 1922.

Resumindo

  • Brasão é um texto heráldico, que descreve um símbolo;
  • Cota de armas é esse símbolo, descrito pelo brasão.

Agora, você já sabe a diferença, e faz parte do time que corrige as coisas. Conto com você!

Caso você queira perguntar, ou fazer algum acréscimo, eu ficarei feliz com o seu contato. E você pode compartilhar este texto com seus amigos – mas só se você quiser!

Foi um prazer dividir este tempo na sua companhia. Da próxima vez, vamos falar sobre os formatos de escudo. Até lá!

11 comentários Adicione o seu

  1. Cassio disse:

    Mas cadê o Brasão da França ?

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    1. Luigi Gomes disse:

      De Blau, três flores-de-lis Or.

      =)

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  2. Miguel Vítor " disse:

    Excelente

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  3. danyellagods disse:

    Muito informativo, adoro aprender com você!

    Obrigada por espalhar seu conhecimento com linguagem educativa 🙂

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  4. Philippe disse:

    Parabéns Luigi
    O texto além de muito informativo e interessante, também ficou engraçado com o “isso não é um brasão”.

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    1. Luigi Gomes disse:

      Muito obrigado, Philippe! Espero que você continue acompanhando o Vexillarium!

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  5. JOSE A OLIVEIRA disse:

    Parabéns Luigi. Otima estratégia na abordagem do tema.

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    1. Luigi Gomes disse:

      Muito obrigado pela aprovação!

      Sugestões são bem-vindas, e espero que você continue acompanhando o nosso trabalho!

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  6. frazaozinho disse:

    Muito bom saber a diferença entre brasão e armas, agora já posso falar de forma correta contigo e corrigir os amigos próximos! Obrigado pela excelente obra

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