Cruz Comissa

Também conhecida como “Tau”.

Tudo bem? Desta vez vamos analisar uma carga muito especial, em profundidade, assim como fizemos da última vez no artigo sobre a flor-de-lis. Se essa é a sua primeira vez, não se assuste com as palavras difíceis: temos um Glossário pra te explicar tudo. Observe as palavras sublinhadas, porque elas costumam ser links para ele.

Como você já sabe, as cargas são os “desenhos” que um escudo pode receber. Esses desenhos são divididos em dois tipos: as peças e os móveis. Entretanto, embora as peças sejam as cargas mais honrosas e importantes, o grande público sempre preferiu os móveis.

Durante o período histórico em que a heráldica era a principal forma de registro e identificação das pessoas, quatro figuras acabaram se tornando as mais famosas e conhecidas do povo. Essa preferência existiu porque a cultura europeia era profundamente cristã. Por isso, são os móveis mais famosos:

  • o leão, entre os animais de pelo;
  • a águia, entre os animais de pluma;
  • a lis, entre os vegetais;
  • a cruz, entre os objetos.

Todos estes quatro móveis são muito complexos, cheios de variações e detalhes próprios. Mas nenhum deles, com certeza absoluta, nem chega perto da cruz. Existem centenas de tipos possíveis. Justamente por isso, escolhi fazer uma página para cada uma – de forma que você possa conhecer os diferentes tipos com calma, e a profundidade que o assunto merece.

Entre as cruzes, as formas mais antigas são quatro: há a cruz quadrata (com as quatro pontas iguais), a cruz decussata (com as pontas na diagonal), e também a cruz imissa (com a ponta de baixo maior, a forma mais comum).

Hoje, vamos analisar a quarta forma: a cruz comissa – também chamada de tau.

“Passai por Jerusalém, e marcai uma cruz…”

A cruz comissa é um móvel muito simples, que tem sua origem num glifo que está entre os mais antigos da humanidade: a letra T. É por essa razão que este símbolo também é chamado de “tau”, o nome que a letra T recebe no idioma/alfabeto grego. O tau grego e o T latino são duas variações, assim como o tav hebraico, de uma letra fenícia chamada taw.

Na Idade Antiga, era muito comum usar glifos para simbolismos não-verbais. No artigo sobre a história dos escudos, você viu o escudo dos espartanos, que era marcado com o lambda, a letra inicial do nome do rei Lacedemo. Dessa mesma maneira, todos os glifos eram muito prezados por organizações e grupos diversos.

Provavelmente você deve estar familiarizado com o chamado “sistema numérico romano”, em que XIV significa “14” ou MMDC significa “2600”. Pois bem, existia também um sistema numérico grego em que as diversas letras helênicas representavam valores, para serem usadas em notações e operações.

Esta é uma lista tributária grega, com os nomes das pessoas em uma coluna, e o valor devido na coluna seguinte. O primeiro cidadão [chamado Elisio] deve pagar três eta (essa letra em forma de H), ou seja, trinta óbulos. Cada letra eta é correspondente a um valor de 10 óbulos.

Além do apego simbológico e cultural, havia outra circunstância interessante na Idade Antiga: os glifos que nós usamos hoje para representar os números matemáticos – que nós chamamos de “algarismos” – ainda não tinham se popularizado naquela época. Por isso, os sistemas numéricos usavam letras da escrita literária para representar grandezas algébricas.

Somando esse caráter de dualidade numérica/verbal das letras, com a cultura em torno delas, os primeiros cristãos começaram a olhar para o tau de maneira especial.

Na passagem do século 3 A.C. para o 2 A.C., quase trezentos anos antes do tempo de Jesus, os rabinos hebraicos estavam preocupados com as novas gerações de judeus. Depois que Alexandre, o Grande, conquistou a região palestina, houve grandes migrações e transformações culturais; e uma grande parte dos judeus não aprendiam a ler nem falar hebraico.

Assim surgiu a Septuaginta, um nome que, em grego, significa “Tradução dos Setenta”. Ela é uma tradução dos textos sagrados hebraicos para a língua helênica, de forma que ela compõe aquilo que hoje nós chamamos de “Antigo Testamento”, no cristianismo.

A tradição judaica explica que a Septuaginta tem esse nome porque setenta rabinos traduziram as Escrituras separadamente. Na hora em que os textos foram comparados, eles estavam exatamente iguais, comprovando que tinham sido inspirados por Deus.

Quando o cristianismo surgiu, essa tradução foi abraçada pelos apóstolos, e o grego ficou sendo a principal língua escrita e falada por eles.

No livro de Gênesis, há um trecho muito interessante que conta das batalhas em que Abraão se envolveu (antes de receber esse nome). Logo no capítulo 14, um verso diz assim:

Quando Abrão soube que seu parente fora sequestrado, mobilizou trezentos e dezoito aliados, familiares seus, e perseguiu os reis até Dã.

Livro de Gênesis, capítulo 14, versículo 14.

Esse numeral, 318, no sistema helênico é escrito como τιη, ou “tau-iota-eta“.

São Clemente é particularmente importante para as culturas cristãs orientais, como os coptas [do Egito] e os maronitas [do Líbano]; mas sua teologia é um alicerce importante de toda a cristandade, incluindo vários ramos protestantes.

Os gregos abreviavam os nomes usando as duas primeiras letras (como no caso do famoso monograma que Constantino viu: XP); e as letras iota-eta são exatamente as duas primeiras do próprio nome de Jesus, em grego: Ἰησοῦς [as letras são: iota-eta-sigma-ômicron-úpsilon-sigma, se você estiver curioso].

Ainda no século 2 (por volta do ano 170), São Clemente de Alexandria, um teólogo africano que é um dos autores mais importantes da doutrina cristã, interpretou este número da seguinte maneira:

A letra que representa o número 300 [ou seja, o tau] é o símbolo do Senhor, e as outras duas indicam o nome dele.

Clemente de Alexandria – Sexto Tomo da Stromata, capítulo 11.

São Clemente enxergou que o tau/300 era a cruz em que o Salvador foi martirizado; e as letras iota/10 e eta/8 representavam o nome de Jesus. Isso porque, em hebraico, o tav é a última letra – a “morte” do alfabeto.

Este é o Breviário de Salisbury, fabricado bem no fim da Idade Média. Perceba que a cruz de Cristo tem o formato de tau: tanto na ilustração edênica quanto na iluminura com as Três Cruzes do Calvário. Use o zoom para aproximar a imagem, se for necessário.

Depois disso, vários outros teólogos patrísticos (que é o nome que damos aos teólogos importantes do período da Idade Antiga), como Tertuliano e Orígenes, embarcaram nessa corrente interpretativa. E assim, a letra T ficou conhecida pelo mundo inteiro como o instrumento da morte de Cristo.

Duzentos anos depois, no final do século 4, são Jerônimo traduziu a Escritura para o latim, criando a versão que os cristãos chamam de Vulgata (ou seja, “na língua comum”). Esse processo foi necessário porque a maioria das pessoas não falava mais grego.

Jerônimo é o protetor dos tradutores e estudiosos de idiomas. Como sua memória é celebrada no último dia de setembro, os católicos do Brasil chamam esse mês de “Mês da Bíblia”. Esta pintura é de Caravaggio.

Agora leia este famoso trecho de Ezequiel:

O Senhor disse: “Passai pelo meio da cidade de Jerusalém, e marcai com uma cruz a testa dos homens que gemem e suspiram por causa de tantos horrores que nela se praticam.

Livro de Ezequiel, capítulo 9, versículo 4.
Note o crânio de Adão, aos pés da Cruz.

No original hebraico, o termo que aqui é chamado de “cruz” é a letra taw fenícia. São Jerônimo traduziu como “… et signa tau super frontes …”, um tau em suas testas, a bênção que Deus ensinou ao profeta Ezequiel. Essa marca também é citada em outros momentos, como no Livro de Jó.

Coincidentemente, o sinal da cruz apostólico era traçado apenas na testa, o que confirma a associação que são Clemente fez entre a marca dos primeiros cristãos e a letra dos livros do Antigo Testamento.

Por conta de todas estas questões culturais e linguísticas que você acabou de descobrir, a letra T era a forma mais utilizada no mundo inteiro para representar a cruz de Cristo, durante a Idade Antiga e até no começo da Idade Média.

“Fazei-me instrumento…”

Neste detalhe de uma pintura de Mathias Grunewald, do final do século 15, podemos ver um homem com o corpo gangrenado pela Ardência.

Já na Idade Média, quinhentos anos depois, uma doença terrível causava a morte de milhares de pessoas na Europa: a Ardência. Essa síndrome misteriosa causava sintomas mentais, como delírios e alucinações; mas também físicos, como a sensação de que seu corpo estava todo em chamas (por isso o nome). Em estágios avançados, o sistema nervoso é completamente comprometido, levando à perda de membros e órgãos, até que a pessoa morra.

No final do século 11, um cavaleiro chamado Gaston de Valloire estava desesperado, porque seu filho Guérin tinha contraído a Ardência. Sem alternativas para tratar a doença, cuja cura era desconhecida, ele peregrinou para a região alpina no sul da França, onde encontrou a abadia de Montmajour, um pequeno santuário beneditino.

Nessa imagem você pode ver uma espiga de trigo infectada pelo esporão, um fungo que cresce se alimentando da seiva produzida pela planta. A Ardência, na verdade, é um envenenamento causado pela ingestão de pães, cervejas ou outros alimentos infectados por esse fungo.

Lá estavam guardados os ossos de santo Antão do Deserto, que viveu no Egito e foi o primeiro monge. Nessa comunidade, o nobre dedicou a vida de seu filho a Deus, suplicando pela intercessão de santo Antão. E sob os cuidados dos monges, ele se recuperou completamente.

Logo em seguida, aconteceu o famoso Concílio de Clermont, em 1095. Nesse encontro de todos os bispos, o papa Urbano II convocou a Primeira Cruzada. Agradecido pela cura, o jovem nobre Guérin de Valloire compareceu ao concílio, e pediu a autorização do papa para fundar a Ordem de Santo Antão. Os membros dessa ordem eram chamados de antoninos, e passaram a usar hábitos negros, por serem apadrinhados pela Ordem de São Bento.

O hábito dos antoninos era negro. Os monges mais importantes na hierarquia da ordem podiam usar mantos trazendo a cruz comissa azul. Mais tardiamente, já na Idade Moderna, aqueles que fossem ordenados usavam também um chapéu tricórneo.

A nova organização se dedicou inteiramente a tratar pacientes acometidos pela Ardência, de forma que a doença começou a ser conhecida como “fogo-de-santo-Antão”. Rapidamente, os hospitais antoninos se espalharam por todos os reinos, diminuindo o sofrimento causado pela doença desconhecida.

Os doentes eram tratados com refeições leves, bastante hidratação, e em troca tinham que ajudar nos afazeres da casa, como limpeza, cultivo de alimentos, entre outros. O papa Inocêncio IV deu aos antoninos o título de “hospitalários” [muito antes de outro grupo com esse nome que você já conhece: a Ordem de São João].

Quase todos eram curados, e por conta da eficiência do método antonino no tratamento da Ardência, a Ordem recebeu mais um reconhecimento: um móvel heráldico de seu suserano, o então papa Bonifácio VIII: uma cruz azul, em forma de letra T.

No Livro de Números, o patriarca Moisés constrói um símbolo sagrado na forma de uma serpente de bronze enrolada em um poste em forma de T. Ele faz isso por ordem de Deus, para curar os hebreus que estavam sentindo seus corpos queimando. Este símbolo se chama Nehu’shtan.

Coincidentemente, o Nehu’shtan fabricado por Moisés também é uma cruz comissa.
Repare que a bengala de santo Antão tem a forma de um T. Os símbolos se entrecruzam.

O pontífice escolheu a cruz comissa para ser o símbolo dos antoninos precisamente porque, assim como Moisés, a ordem trazia alívio para aqueles que estavam sendo queimados pela doença misteriosa.

A ordem aceitou o presente com prazer, porque acreditava que a presença de Deus [em grego Theos] era o principal componente da cura. Além disso, o símbolo se assemelhava à bengala, um dos atributos de santo Antão, e também à muleta, equipamento utilizado durante o tratamento dos pacientes em estados mais graves.

O escudo da Ordem de Santo Antão é um caso especial, que fere a Lei das Tinturas propositalmente. O pontífice escolheu estas cores para significar o caráter incompreensível da ação de Deus no tratamento da misteriosa Ardência, como algo que não pode ser entendido pela lógica humana.

“É dando, que se recebe”

Então, no começo do século 13, um rapaz chamado Giovanni tinha o sonho de se tornar um cavaleiro. Depois de ser capturado numa batalha e ficar meses prisioneiro, decidiu levar uma vida mais tranquila, e criou o costume de passear a cavalo pelos bosques que existiam em volta de Assis, uma cidade italiana onde ele morava.

Um dia, perdido na floresta, ouviu o barulho de uma sineta. Giovanni perseguiu o som em busca de ser salvo, mas descobriu que era um leproso, andando apoiado numa bengala. As pessoas que contraíam essa doença eram obrigadas a usar sinos no corpo, para avisar os outros de sua presença.

O homem estava num estágio avançado da doença, magro como um esqueleto, a pele repuxada, com várias feridas abertas e dedos faltando. Estranhamente, isso não assustou ou enojou o rapaz, que desmontou, para olhar o leproso nos olhos. Ele tinha as mãos arruinadas enfaixadas, e estava vestido com trapos.

Giovanni perguntou se o leproso tinha fome, porque ele tinha pão e leite nos alforjes do cavalo. Mas o homem respondeu que só estava com muito frio. Comovido, o rapaz o abraçou com honestidade e carinho. Depois disso, tirou o manto que trazia sobre a roupa e deu a ele.

O episódio marcou profundamente a alma de Giovanni, que descobriu que havia um hospital da Ordem de Santo Antão ali naquela mesma cidade. Por conta disso, ele passou a ajudar os monges antoninos no cuidado dos doentes de Assis, e acabou sendo profundamente influenciado pela simbologia da ordem.

Esta é uma carta que o próprio Francisco escreveu para seu melhor amigo, o frei Leão. Repare que, como símbolo autográfico (ou seja, sua assinatura), ele traça um grande tau atravessando uma cabeça, do mesmo modo que a iconografia crucifixional.

Tempos depois, o rapaz mudou de nome: agora se chamava Francisco. E acabou fundando sua própria congregação: a Ordem dos Frades Menores [OFM], que nós chamamos de “franciscanos”.

No ano de 1215, Francisco foi ao Quarto Concílio de Latrão, e lá ouviu o papa Inocêncio III explicar o símbolo do tau, como emblema de valores que você viu até agora: martírio, solidariedade e cura.

Francisco já conhecia a cruz comissa, do seu tempo de serviço com os antoninos. Mas ele ficou tão empolgado com a homilia do papa sobre este símbolo, que passou a adotá-lo pessoalmente, transmitindo-o aos seus amigos próximos, e depois a toda a família franciscana.

O hábito franciscano forma o tau, quando o monge abre os braços. É a mesma posição em que o santo fundador estava, quando foi transformado pelo abraço no homem doente.

Assim, os franciscanos começaram a marcar suas testas, roupas e casas com cruzes comissas, um costume que permanece até hoje, em todos os ramos da família de ordens.

No fim da Idade Média, a pandemia de Ardência foi terminando, e os antoninos foram diminuindo até desaparecerem e a ordem ser dissolvida no fim do século 17. Por esta razão, hoje em dia, o símbolo do tau é sempre associado à espiritualidade franciscana – herdeira tanto do simbolismo quanto do carisma do serviço ao próximo.

Os franciscanos chamam essa cena de “o Abraço”, numa referência a uma visão que o santo fundador teve. Depois disso, são Francisco passou a relacionar seu encontro com o leproso como se fosse um encontro com Jesus em pessoa.

Num desdobramento simbólico, a cruz comissa faz parte de um dos mais importantes emblemas heráldicos da família franciscana: a Conformidade. Este importante símbolo é composto por dois braços com as mãos chagadas, cruzados em saltire; na frente de um tau.

A Conformidade é um símbolo muito bonito. Se você reparar, ela está presente em muitos lugares, como emblemas de paróquias e cidades que tenham ligações históricas com a OFM.

O braço de cima, na posição nobre (em banda) está nu, porque é o braço de Jesus. Enquanto o braço de baixo, na posição vulgar (em barra) está vestido, porque é o braço de são Francisco. Este emblema representa que Francisco e os seus filhos estão em conformidade com o sofrimento e as lições de Cristo. Eles se cruzam no ponto do Tau: porque é na Cruz de Cristo em que eles se encontram, segundo a mística dos franciscanos.

Estas são as armas de dom Leon Dubrawski, bispo de Kamianetz (na Ucrânia). Ele usou a Conformidade como emblema pessoal, acrescendo o pombo que é atributo do Espírito Santo – um sinal da sua condição episcopal.

A cruz comissa na Heráldica

Agora que você compreendeu as questões do valor cultural da cruz comissa para o Ocidente, vamos examinar seu uso como móvel heráldico.

Quando brasonada apenas como “cruz comissa” ou “tau”, o móvel deve ser entendido e realizado da seguinte maneira:

Uma letra T simples, retilínea e sem detalhes. As barras devem ter uma espessura menor do que um sexto da largura do escudo, e maior que um décimo da mesma. As pontas não devem tocar as laterais do escudo.

Além disso, quando for usada nas cores que lhe são próprias, ela vem completamente em tenné, o esmalte castanho. Nas correntes e contextos em que essa tintura é proibida, o próprio do tau é goles. Precisamente, é a interpretação visual que você viu no começo deste artigo, que eu agora repito por conveniência:

Um tau de tenné [castanho].
Este é o escudo da Ordem de Santo Antão, reformado pelo imperador Maximiliano. Note que o escudete da Ordem tem a Águia Negra do Sacro-Império como suporte, como um sinal de vassalagem. Ele também corrigiu o fundo para não ferir a Lei das Tinturas.

Vamos observar algumas variações da cruz comissa, agora.

A cruz comissa “antonina” é quando deve trazer na realização as três pontas de maneira oblíqua, curvando os braços. Este é o modo que era utilizado pela Ordem de Santo Antão, como você aprendeu hoje.

Heraldicamente, essa variação é a mais comum, de forma que muitos heraldistas realizavam cruzes comissas automaticamente como cruzes antoninas. Assim, a maioria dos taus heráldicos medievais que você poderá encontrar pelo mundo afora, serão referências a esta finada congregação.

Note a cruz franciscana no pedestal deste sacrário, na capela interna de são Damião, localizada no interior da Basílica de São Francisco das Chagas. Este templo fica localizado na cidade de Canindé, no estado do Ceará.

Quando for brasonada como “franciscana”, a cruz deve ser realizada de maneira muito semelhante à antonina. Entretanto, as três pontas são cortadas assimetricamente em chanfro; para referenciar o hábito da OFM.

Essa é a forma mais fácil de encontrar nos dias de hoje, em camisetas, rosários e enfeites em geral. Com toda certeza você já a viu por aí.

Já uma cruz comissa “altopasciana”, também é parecida com a antonina: porém sua ponta inferior deve ser fincada. Essa variação recebe este nome porque era utilizada por outra congregação da Igreja – a Ordem de Altopascio.

O selo deles trazia a cruz altopasciana, ladeada pelas conchas de vieira que são atributos de são Tiago, patrono da Ordem.

Estes antigos monges do século 11 cuidavam de uma parte italiana do caminho entre a Europa e a Ásia. A cruz que eles usavam como emblema faz referência tanto à espiritualidade antonina, quanto aos machados que usavam para limpar as estradas e construir as pontes naquela região montanhosa da Toscana.

Outro detalhe dessa variação do tau, é que a junção das duas partes costuma ser proeminente, como o nó da cava de um machado ou picareta.

Repare que o escudo de Thin também traz o mesmo machado arcaico que era usado pelos altopascianos. Essa ferramenta/arma é chamada de “francisca”.

Entre as formas aumentadas da cruz comissa, temos a “potente”. Essa forma é realizada com terminações perpendiculares em cada ponta, como se fosse um T que termina em miniaturas de si mesmo. Esse aumento servia para reforçar a associação do símbolo com a muleta ou a bengala. Em terras ibéricas, principalmente em Portugal, as cruzes potentes eram realizadas com um chanfro, como as serifas modernas.

Esse escudo azul ao lado é da cidade francesa de Thin-le-Moutier, onde existia uma casa antonina – motivo da cidade ter recebido uma cruz comissa de prata sobre o campo azul-royal do Reino de França. Tempos depois, quando um dos filhos do rei foi salvo da Ardência pelos monges de lá, eles receberam o aumento heráldico que você pode ver na imagem, e a cruz passou a ser usada floretada.

Este tau páteo é uma marca tardia em um hospital antonino em Hosch. Note o formato germânico do escudo.

Uma cruz comissa “dentada” traz suas pontas marcadas como dentes de uma serra; a “pátea” tem as pontas alongadas de maneira oblíqua; enquanto a versão floretada recebe pequenas lises cortadas em suas extremidades.

Muitos outros aumentos podem ser aplicados a esse móvel, mas me limitei a listar apenas os que encontrei com uso histórico. Na verdade, qualquer aumento de outras cruzes pode ser aplicado a uma cruz comissa.

Além de seu uso como móvel primário, o tau pode ser usado como uma marca de cadência, para diferenciar pessoas que têm direito a usar um escudo igual.

Por exemplo: um nobre inglês, sir Robert Drury, ao se tornar suserano do feudo de Rougham herdou o seguinte brasão de seu pai: “De argent. Em um chefe sinople, duas molettes or“. Isto significa que seu escudo era branco, com uma faixa superior verde trazendo duas esporas douradas.

Foi então, que sir William, seu irmão mais novo, se tornou o senhor do feudo de Halsted. Sendo assim, ele recebeu o direito de usar o mesmo brasão, brisurado com um tau dourado; que foi passado aos seus decendentes como uma nova linhagem da Casa Drury.

Deslize para os lados, e você poderá perceber a diferença entre os escudos dos dois irmãos Drury.

Confira agora uma tabela com os exemplos de brasonamento realizados.

Brasão: “De argent, (…)”Realização num escudo
“(…) uma cruz comissa.”
“(…) uma cruz comissa antonina.” [anthoinine]
“(…) uma cruz comissa franciscana.” [franciscaine]
“(…) uma cruz comissa altopasciana.” [altopascienne]
“(…) uma cruz comissa potente.” [potenceé]
“(…) uma cruz comissa potente ibérica.” [potencée ibérique]
“(…) uma cruz comissa floretada.” [fleuretty]
“(…) uma cruz comissa dentada.” [dentée]
“(…) uma cruz comissa pátea.” [patteé]
“(…) semeado de taus.”

De qualquer destas formas, a cruz comissa está muito presente no imaginário simbólico ocidental, até nos dias de hoje. Preste atenção ao seu redor, e você poderá comprovar.

😉

Para concluir

Foi uma conversa muito interessante, imagino que você concorde comigo. Examinamos as origens históricas (e as míticas) do uso desse símbolo tão importante para a nossa cultura. Observamos seu uso heráldico como móvel, e suas utilizações como variação de campo e aumento. Espero que você tenha gostado das ilustrações que eu fiz para exemplificar.

Tenho certeza que será de grande enriquecimento para você, daqui em diante.

Obrigado pela sua companhia, e nos vemos no próximo artigo! Se você tiver alguma dúvida, elogio, crítica ou correção, por favor coloque aqui embaixo. Não deixe de comentar se tiver alguma sugestão de tema!

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Agradeço ao meu amigo Thomás, que ajudou com revisões e sugestões durante o processo de escrita e polimento deste texto. Como sempre, depois da linha abaixo, tem as referências bibliográficas explicadas.

Até breve!

Quem diria que caberia tanta coisa em um símbolo tão simples?


Abaixo, deixo as fontes que utilizei na pesquisa para este ensaio, e que recomendo para leituras mais aprofundadas sobre este tema e outros relacionados.

Fontes (mais ou menos) Específicas:

– A Bíblia Sagrada da CNBB, reeditada recentemente, com base na Vulgata traduzida por São Jerônimo. Uma obra de tradução muito primorosa, voltada para o uso litúrgico das Escrituras. É o texto utilizado nas missas e publicações da ICAR no Brasil. Usei por conta das citações da primeira parte.

– A Septuaginta, versão do Antigo Testamento em grego antigo, traduzida por setenta rabinos no século II a.C. Você encontra ela facilmente na internet, porque é de domínio público.

– O livro Cruzes Cristãs e Outras – suas formas e significados, de Fredrick Bunce. É um dicionário ilustrado de símbolos cruciformes. Esse autor é um estudioso de simbologias religiosas, tem vários outros livros sobre temáticas asiáticas e outros. Indisponível em português.

– A matéria De onde veio o alfabeto grego?, do portal educacional inglês Bright Hub Education. Escrito pelos professores Sonal Panse e Wendy Finn.

– O livro Manual da matemática grega, do professor Thomas Heath, da Universidade de Oxford. Também indisponível em português.

– A matéria Sistemas numéricos na Grécia antiga, do portal do departamento de Matemática da Universidade de Paris. Escrito pelo professor Samuel Verdan.

– A obra teológica de são Clemente de Alexandria, chamada Stromata. (pronuncia-se /istrômata/). Esse nome grego significa “Colcha de Retalhos”, porque é uma coletânea de escritos clementinos sobre diversos assuntos doutrinários, exegéticos e litúrgicos. Aqui eu usei o sexto tomo em busca das interpretações simbológicas. Acredito que não exista uma tradução completa em português, mas há várias traduções parciais publicadas por editoras como a Paulus, Vozes e Ecclesiæ.

– O livreto Os Antoninos: uma história documentada e ilustrada, publicado pelo instituto de patrimônio da cidade francesa de Saint-Antoine-le-château, que nasceu em torno de uma casa hospitalar da Ordem de Santo Antão.

– O livro As Ordens Religiosas: sua vida e sua arte, escrito pelo sociólogo francês Gabriel le Bras. É um ótimo resumo dos costumes das congregações. Também indisponível em português.

– A carta da Benção ao irmão Leão, escrita por são Francisco para seu melhor amigo. O original está no relicário da Basílica de Nossa Senhora dos Anjos, centro mundial dos franciscanos. Fica em Assis, na Itália.

– A coletânea Escritos de São Francisco, organizada pela iniciativa Franciscan Experience, da OFM. Eu usei a versão anglófona, mas durante a pesquisa encontrei uma tradução para o português, feita pelo frei Edmundo Binder, em 1973.

– A obra A vida de São Francisco, escrita em 1266 por Giovanni di Fidanza, nome civil do lendário são Boaventura. Usei a tradução do latim para o inglês, como fonte das interpretações boaventurianas sobre a espiritualidade franciscana.

– A obra As Florinhas de São Francisco, escrita também na Idade Média. Essa é uma das obras mais importantes da literatura medieval. Você acha facinho, tem mil traduções, em mil editoras. Trata, por exemplo, dos casos que falamos neste artigo, e também da amizade que Francisco manteve com outros personagens importantes da cristandade, como Antônio e Clara. Leia.

– O Livro da Conformidade, escrito pelo frei Bartolomeu de Pisa, em 1385. É uma importante obra escolástica que analisa a conformidade entre a vida de são Francisco e a vida de Jesus; com as lentes propostas por pensadores como são Boaventura e santo Tomás. Ainda indisponível em português.

– O livro Francisco de Assis: A mensagem em seus escritos, escrito pelo frei Thaddee Matura, da OFM. Também usei uma tradução para o inglês, mas acredito que exista uma versão brasileira, porque já vi outros livros desse monge por aqui. Este é uma fonte importante para entender como os ramos da família franciscana entendem a espiritualidade de seu fundador.

– O portal brasileiro da Ordem dos Frades Menores [OFM], que é o principal e mais antigo ramo da família franciscana, fundado diretamente por são Francisco de Assis.

– O portal da Província da Imaculada Conceição, que administra os franciscanos brasileiros.

– O portal americano da Ordem dos Franciscanos Seculares [OFS], que é um ramo auxiliar da família franciscana, de espiritualidade social.

Fontes Gerais:

– O Dicionário de Conceitos e Símbolos na Arte, escrito pelo historiador James Hall, como obra de apoio tanto para estudos das ciências humanas (como por exemplo na psicologia de Jung – outro interesse do professor Hall), quanto para antiquários, vendedores e colecionadores, interessados em aprender mais sobre as particularidades desse ramo. Usei a edição americana de 1974, tradução indisponível.

– O Dicionário de Ornamentos, pelas pesquisadoras inglesas Philippa Lewis e Gillian Darley. Essa obra é incrível (tá bem, incrível pra pessoas como eu, aficionadas por terminologias específicas), cobre muitos detalhes interessantes da heráldica, numismática, falerística, arquitetura e outras artes. Em inglês, edição de 1986.

– O livro Heráldica: Origens e Significados, do famosíssimo professor Michel Pastoureau, da Universidade de Lausanne. O professor Pastoureau é do mesmo bolsão que produziu grandes nomes dos estudos culturais do Ocidente, como o professor Duby, Jacques le Goff e Marc Bloch. Usei a edição inglesa de 1997, mas também acho que tem em português (mesma coisa que o prof. Duby).

– O Guia Completo da Heráldica: escrito por sir Arthur Davies, um dos maiores heraldistas da humanidade, membro do Colégio de Armas do Império Britânico. Obra importantíssima sobre o tema, que sempre cito aqui no Vex, mas indisponível em português.

– O Dicionário Completo de Heráldica, compilado pelo historiador inglês William Berry, do período vitoriano. É uma obra que puxa mais para as questões genealógicas, como a cadência, a pretensa e o impalamento. Usei a versão de 1828. Indisponível em português.

– O Painel Heráldico, ilustrado pelo também vitoriano William Newton. Uma coleção inglesa de realizações de armas e ornamentos heráldicos feitas com muito capricho. Edição inglesa de 1846, também indisponível em português.

– O Glossário de Termos da Heráldica Britânica, escrito pelo barão Henry Gough, heraldista inglês. É útil, mas muito restrito à corrente heráldica insular. Usei a edição de 1894, para comparar questões léxicas, visto que este artigo é dedicado a um símbolo mais importante para as correntes continentais. Também indisponível em português.

– O Dicionário de Artes, Ciências, Literatura e Cultura Geral, publicado pela Encyclopædia Britannica. Eu usei a versão de 1911, em inglês.

– A própria Enciclopédia Britânica, que chamamos às vezes de Mirador ou de Barsa, aqui no Brasil. Eu cresci usando esses livros como fonte, nas bibliotecas públicas. Morria de vontade de comprar, mas era mais caro que um carro. Hoje em dia é bem barato, porque não se usam mais enciclopédias impressas. Ela também contém artigos para praticamente todas as personalidades que mencionamos.

– A Enciclopédia Católica, também disponivel apenas online, depois do declínio das enciclopédias no século XXI. É uma fonte muito confiável e didática para as hagiografias. Embora seja, de alguma maneira, superficial, ela tem muito boas referências, que se tornam ganchos importantes para aprofundar a sua pesquisa.

– A Legenda Áurea [“lenda de ouro”], concluída em 1266 por Tiago de Voragine. É uma coleção muito famosa de hagiografias, que coleta as visões medievais sobre as tradições e folclores relacionados à veneração dos santos. Aqui você vai achar a hagiografia dos santos citados neste artigo, e diversas outras. Usei a versão brasileira publicada pela Companhia das Letras. Recomendo demais!

4 comentários Adicione o seu

  1. elvisdenes disse:

    Parabéns, muito bem explicado.

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  2. Silvestre Magnago de Mattos Panciere disse:

    Parabéns! nota-se seu apreço pelo tema pelo domínio dele e o tamanho do artigo kkk ansioso para o próximo.

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    1. Luigi Gomes disse:

      Pode sugerir temas!

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