Conhecendo o Escudo

Vamos começar pelo objeto heráldico por excelência: o escudo.

Como vai? Eu estive bastante ansioso para conversarmos mais sobre a heráldica, desde nosso último encontro, quando você aprendeu o que não é um brasão.

Para recapitular: a peça heráldica verdadeira é apenas o escudo, que recebe as armas (ou seja, os símbolos e cores) que identificam a pessoa ou grupo a quem se pertence. Todo o resto são ornamentos (que têm suas funções, também, mas são apenas adicionais).

O hábito de pintar e decorar os escudos surgiu muito cedo, nas culturas humanas. Na arqueologia de todos povos e em todos os continentes, escudos com vestígios de desenhos estão entre os artefatos mais antigos, descobertos.

Este costume é muito semelhante ao uso de outro “utensílio” muito comum na vida das sociedades humanas: as roupas. Assim como o hábito de se vestir, que surgiu entrelaçando diversas funções, esse processo também aconteceu com as relações entre as pessoas e outros objetos e ferramentas, tais como o escudo.

Os humanos primitivos se vestiam para se proteger, mas também para alterar (positiva ou negativamente) a maneira como os outros os viam. Vestes de peles indicavam mais poder e força, porque era preciso caçar para obtê-las. Eram um sinal de fartura, herdadas de pais com posses, e também um indicativo sexual – era mais vantajoso ter filhos com pessoas que conseguissem obter mais alimento para criar os bebês.

O florescer das civilizações trouxe a sofisticação, cada vez maior, dos conceitos trabalhados pelas mentes humanas. Mas essas bases comportamentais se mantiveram, e assim uma ferramenta de proteção corporal se transformou em um método de distinção social.

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Os egípcios usavam escudos feitos de couro bovino. Essa pintura é de 4500 anos atrás.

Como você leu no artigo anterior, pintar cores e símbolos nos escudos servia como um método rudimentar de registro de identidade. Era assim, milênios antes da invenção dos documentos que conhecemos hoje: estar vestido com as cores e símbolos de um reino ou de uma família servia para identificar aquela pessoa como membro do grupo.

Isso também era de vital importância nas batalhas, para distinguir amigos de possíveis inimigos, principalmente à distância – o que evoluiu para os uniformes esportivos. Você sabe como é importante diferenciar quem é do seu time de futebol, de quem não é. Na hora do jogo, o cérebro entende as cores em fração de segundo, muito mais rápido (e eficiente) do que o reconhecimento de características faciais.

A heráldica em si é ocidental, e europeia; mas já havia elementos de identificação e decoração muito antes da consolidação dessas regras, mesmo na pré-história. Um exemplo famoso, na Idade Antiga (3000 anos atrás, se você está enferrujado na História), é o escudo de bronze dos hoplitas espartanos, decorado com uma borda vermelha, e a letra Λ (pronuncia-se /lânda/). A visão do vulto dourado e vermelho causava terror à maior parte dos gregos, naquela época.

lacedaemonian shield
A letra Λ é a inicial do nome de Lacedemo, o fundador e primeiro rei da polis espartana (nós chamamos de “epônimo”).

Durante a Idade Antiga, que foi até o século V (1.500 anos atrás), os escudos menores foram os preferidos, como o redondo helênico. Eles eram fabricados de madeira, couro ou metais como o bronze, que era muito precioso por sua resistência, leveza e durabilidade contra a oxidação (em comparação com o ferro, por exemplo).

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Isto é um pequeno fragmento da Tapeçaria de Bayeux, o registro mais antigo que temos de escudos de lágrima. Essa peça é a base gráfica para as páginas de memes “medievalizados” nas redes sociais, que você já deve ter visto.

Mas as mudanças no uso das armas forçaram mudanças no uso dos escudos, também. No século X, os normandos começaram a montar tropas montadas. Junto com esta tática de combate, foi necessário o surgimento de um novo tipo de escudo, que pudesse proteger a perna do soldado a cavalo. Nascia o escudo lágrima, que é chamado em inglês de kite shield (“escudo pipa”, por causa de sua forma semelhante ao brinquedo). Ao longo do tempo, o topo arredondado do escudo foi dando lugar a uma forma retilínea, por dois motivos: a facilidade de construí-lo assim; e a segurança do cavaleiro, que podia segurar o escudo para proteger a face, com menos prejuízo do campo de visão.

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Aqui você pode ver o escudo normando de topo retilíneo, ilustrado numa iluminura em uma Bíblia manuscrita na cidade alemã de Dusseldorf, datada da metade do século XII (800 anos atrás).

Entretanto, a Idade Média trouxe também o desenvolvimento das técnicas de forja, e o domínio dos europeus sobre a criação de peças de aço foi aumentando, cada vez mais, o tamanho das armaduras. Isso tornava escudos de corpo inteiro muito desnecessariamente pesados, fazendo com que o tamanho deles fosse diminuindo novamente.

Assim, o escudo normando de topo reto se transformou no heater shield, que nós poderíamos (mas não fazemos) chamar de “escudo-ferro”, por causa de sua semelhança com um ferro de passar roupas. Na verdade, em português (e em todas as línguas latinas), ele é chamado apenas de escudo, mesmo. Ou “escudo verdadeiro”, ou ainda “escudo antigo” (do francês l’écu ancien).

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Esta iluminura, mostrando uma tropa mais rica (usando heater shields) contra uma mais pobre (usando um broquel), está no Saltério de São Luís, rei de França. Datado do século XIII.

O escudo antigo é, por excelência e tradição, o objeto heráldico mais importante. Todas as linhagens heráldicas descendem do uso e das regras dos escudos antigos pelos povos francos, continentais e insulares. É por isso que, na maioria dos brasões (que são textos, lembre-se!), as armas são assumidas pelo leitor como se estivessem pintadas sobre um escudo na forma de escudo antigo.

washington
A imagem da capa desse artigo é a representação das armas do lorde do castelo de Wessyngton, num vitral da abadia de Selby, na Inglaterra. Esse foi o mesmo escudo utilizado pelo seu descendente, o primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington. O brasão dele é “De argent, duas divisas goles. Em chefe, três molettes do segundo.” Como ele não especifica o formato, elas são pintadas na forma de escudo antigo, como você pode ver.

No próximo encontro, vamos continuar aprofundando o entendimento sobre os escudos, e examinaremos as formas que esse objeto heráldico assumiu, nas diferentes correntes.

Se você tiver alguma pergunta ou comentário, por favor não deixe de colocá-lo abaixo. Novamente, agradeço sua companhia. Nos vemos na próxima!

5 comentários Adicione o seu

  1. Philippe disse:

    Muito interessante saber como esse tipo de coisa surgiu realmente. Continue o bom trabalho mano Luigi.

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    1. Luigi Gomes disse:

      Muito obrigado! Continue com a gente!

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  2. Joel Meireles disse:

    Aprendi muito com esse texto. Vou salvar o link aqui pra acompanhar as postagens! Parabéns!

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    1. Luigi Gomes disse:

      Obrigado, Joel. Em breve vou continuar escrevendo sobre os escudos.

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  3. frazaozinho disse:

    Muito bom saber a origem e ainda de uma forma descontraída que nos prende ainda mais à aprender, obrigado pelo excelente artigo!

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