Noel e os gift-bringers

Hoje vamos examinar as várias personagens que trazem presentes nos Natais do mundo afora. Venha comigo!

O ensaio sobre as origens do Papai Noel e a sua não-relação com uma certa marca de refrigerantes foi um estrondoso sucesso, e muitos me pediram para aprofundar um pouco mais a exposição. Por isso, com vocês, os gift-bringers!

Guift.. o quê?

Nos estudos acadêmicos sobre as culturas, existem sistemas de classificações que possibilitam análises comparativas entre figuras e elementos presentes nos folclores e lendas. É por meio desses sistemas (dos quais o mais famoso é o Aarne-Thompson), que pesquisas como a deste artigo são possíveis.

Como eu expliquei no artigo anterior (clique aqui para ler), em todo o mundo ocidental cristianizado, a tradição natalina assumiu formas locais sincretizadas com as culturas nativas, absorvendo características das religiões e folclores dos povos mais antigos.

Foi com base no trabalho dos folcloristas que surgiu o conceito de gift-bringer (“presenteador” ou “trazedor de presentes”, numa tradução livre). Dentro dessa classificação cabe qualquer figura sobrenatural que presenteie as pessoas no tempo do solstício.

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Os presentes mais tradicionais eram doces, frutas ou moedas.

Três moedas

O presenteador mais antigo que ainda é esperado pelas crianças do século 21 é São Nicolau de Myra, um dos santos mais populares entre os que são venerados pelos cristãos. Além de sua benevolência e generosidade, Nikolas era um grande taumaturgo (que é o termo cristão para os santos que operam milagres enquanto estão vivos), o que aumentou muito mais a sua fama.

Seu hábito de presentear secretamente é justificado pelo ensinamento de Jesus que a caridade deve ser praticada em segredo, para evitar a vaidade. Na Europa oriental, onde está presente, ele entrega os mimos no dia 6 de dezembro, data da memória de seu martírio.

São Nicolau é representado usando vestes clericais: a alva, túnica branca que os sacerdotes utilizam na liturgia. A casula, espécie de manto usado sobre a alva, que pode ser vermelha, que representa seu sacrifício; branca, que representa o tempo do Natal; ou ainda dourada; que representa a importância desta solenidade.

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Este é um cartão de Natal francês. Repare nas vestes e objetos do santo.

Ele ainda traz os sinais visíveis de sua posição como bispo: sobre a cabeça a mitra, chapéu característico dos sacerdotes desse grau; bem como o báculo, uma espécie de cajado pastoril; e o omóforo, que é uma espécie de cachecol de lã de cordeiro, que era usado pelos Apóstolos.

Aqui no Brasil, São Nicolau não é muito conhecido, porque fomos culturalmente influenciados pelos norte-americanos, mas de fato, ele é o gift-bringer mais famoso e presente nos Natais deste mundo afora.

Abaixo, coloquei uma tabela onde você pode ver como ele é chamado, nos países onde está presente:

País Nome de são Nicolau
Alemanha Sankt Nikolaus
Áustria Saint Nikolo
Bélgica Saint-Nikloi
Croácia Sveti Nikola
Dinamarca Sint Nicolaas
Eslovênia Miklavz
Espanha San Nicolás
França Saint Nicolas
Grécia Hágios Nikolaos
Hungria Mikulás
Itália San Nicolao
Luxemburgo Kleeschen ou Zinniklos
Países Baixos Sinterklaos
Polônia Swiety Mikolaj
Portugal São Nicolau
República Checa Mikulas
Romênia Mos Nikolae
Suíça Samichlaus
Ucrânia Sviaty Mykolay

Da igreja para o folclore

Aos poucos, nos lugares e famílias onde as religiões pagãs eram mais enraizadas, como nos territórios holandeses, as histórias de São Nicolau foram se misturando com elementos das culturas das tribos germânicas e célticas. Assim, surgiu o Sinterklaas, uma figura folclórica muito interessante.

Representado como um velho homem, de barba branca comprida, e comportamento muito sério, Sinterklaas tem uma diferença em relação aos outros gift-bringers: ele mora no sul!

Todos os anos, ele passa os meses em sua oficina, que fica num castelo nas terras quentes da Espanha, sendo ajudado por um grupo de homenzinhos de pele escura, chamados “mouros” (uma referência ao povo miscigenado que habitava a Ibéria antes da Reconquista). Eles são liderados pelo principal ajudante de Sinterklaas, que se chama Zwarte Piet, ou “Pedro Negro”. Todos eles vestem roupas multicoloridas, como as personagens da Renascença.

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Pedro Negro é seu aprendiz e principal ajudante.

Sinterklaas chega montado num cavalo branco chamado Amérigo, liderando um cortejo de mouros. Ele carrega um grande livro vermelho, onde estão escritos os nomes de todas as crianças, além de se elas se comportaram bem ou mal, durante o ano.

Aqueles que tiveram bom comportamento são presenteados com brinquedos e laranjas, uma fruta rara vinda das terras do sul. Já os bagunceiros são levados junto do cortejo para trabalhar.

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Ele difere dos outros porque é muito sério, além de morar numa terra quente.

Acredita-se que estes elementos tenham se originado do contato com as invasões mouras, quando este povo promovia ataques para saquear as aldeias na costa da Holanda, sequestrando pessoas para serem feitas de escravos.

Do século 20 para cá, o Sinterklaas foi absorvendo elementos da cultura norte-americana, devido aos processos de globalização comunicacional. Além disso, há muita crítica à prática de blackface na representação de seus ajudantes mouros, que é considerada uma forma de racismo estrutural.

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Cada vez é mais raro ver os mouros com Sinterklaas.

Blim-blom, blim-blom, blim-blom! ♪♫♪

No leste, nas regiões geladas onde vivem os povos eslavos, surgiu uma figura condizente com o clima rigoroso: Ded Moroz, o “Vovô Inverno”. No início, esse velho misterioso era uma espécie de espírito feiticeiro que personificava os ventos congelantes e as nevascas. Esse arquétipo se assemelha ao Jack Frost, presente nos contos de língua inglesa.

Entretanto, com o surgimento do regime soviético, que era extremamente anti-religioso, a figura do vovô, também chamado de Morozko, foi abraçada pelo povo russo, e se espalhou pelos países de maioria eslava.

Vestindo azul, com padrões de flocos de neve e portando um cajado mágico, ele é acompanhado por sua aprendiz e neta, que se chama Snegurochka. Esse é um detalhe interessante, porque ela é a única figura feminina nas tradições natalinas (pelo menos até o século 20, com o surgimento da Senhora Claus, que aqui conhecemos como Mamãe Noel).

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A menina é representada com uma coroa de flocos de neve, que serviu de inspiração para o design das roupas da rainha Elsa, da Disney.

A chegada de Morozko e Snegurochka é anunciada pelo vento gelado que sacode os pingentes de gelo nas árvores, que soam como guizos e sinetas. Eles trazem presentes para as boas crianças, enquanto espantam a maligna Baba Yaga, uma bruxa que rouba meninos e meninas para sabe-se lá o quê. As celebrações acontecem na virada do Ano-Novo, porque o regime desaprovava os festejos cristãos de Natal.

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Eu teria medo de tirar foto com uma bruxa no shopping.

Com o fim da União Soviética, alguns dos países fizeram esforços para alterar as representações de Ded Moroz, tentando se distanciar da cultura promovida pelo antigo regime. Assim, apareceram versões do vovô vestido de vermelho, assimilando características dos gift-bringers ocidentais. Na Romênia, por exemplo, ele é jovem e entrega os presentes sozinho.

Nesta outra tabela, você pode ver como ele é chamado em vários lugares:

País Nome do Vovô Inverno
Armênia Dzmer Papik
Azerbaijão Saxta Babá
Belarus Dzied Maroz
Bósnia Djeda Mraz
Bulgária Dyado Mraz
Cazaquistão Ayaz Ata
Croácia Djed Mraz
Eslovênia Dedek Mraz
Macedônia Dedo Mraz
Mongólia Ovliin Ovoô
Montenegro Ded Mraz
Polônia Dziadek Mroz
Quirguistão Ayaz Ata
Romênia Mos Gerilá
Rússia (parte asiática) Chys Khan
Rússia (parte europeia) Ded Moroz
Sérvia Deda Mraz
Tadjiquistão Boboi Barfi
Turcomenistão Ayaz Bobô
Ucrânia Did Moroz

Deixei meu sapatinho… ♪♫♪

Enquanto isso, nas partes mais ocidentais e insulares da Europa, principalmente nas ilhas britânicas, os presentes são trazidos pelo Father Christmas, o “Pai do Natal”, ou mesmo “Pai Natal”.

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Ele é encontrado em gravuras muito antigas.

Nascido como uma personificação do tempo invernal (que em inglês é chamado de Yuletide), essa figura folclórica era associada aos costumes da velha religião céltica, como uma espécie de druida misterioso que surgia e desaparecia sem avisar, durante a estação das neves.

Com a miscigenação entre os celtas e os povos escandinavos, no tempo das invasões vikings, elementos da mitologia nórdica também foram sendo misturados na cultura invernal dos bretões, como as competições de quem come ou bebe mais, e o costume de deixar sapatos (ou meias) com cenouras ou frutas à noite, para que o cavalo de Odin pudesse se alimentar.

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Ele vinha montado num bode, vestido de peles, e carregando uma vasilha de wassail: uma bebida feita de maçãs, parecida com a nossa cidra.

Naquele tempo o Father Christmas, não era relacionado às crianças, mas aos adultos; e aos banquetes e costumes do frio, além dos aspectos das culturas pagãs daquelas regiões da Europa. Entretanto, alguns fatores o transformaram num gift-bringer como os outros, como a cristianização da Bretanha, que se puritanizou; e a influência cultural dos Estados Unidos, mais recentemente.

As versões mais antigas do Father Christmas eram representadas vestindo verde, cor tradicionalmente relacionada ao Yule, por meio das plantas que resistem ao inverno e não perdem suas folhagens. Desta maneira, era como se seu comportamento alegre e esperançoso resistisse ao período difícil e com pouca comida. Ele usava adereços feitos com as plantas relacionadas ao período, como o pinheiro, o visco e, principalmente, o azevinho.

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O Father Christmas aparece no famoso Conto de Natal, de Dickens, como o “Espírito do Natal Presente”.

A figura foi levada para as colônias americanas, e logo logo ele se espalhou do lado de cá do Atlântico, se transformando na figura com que estamos acostumados por aqui.

Eu pensei que todo mundo fosse filho… ♪♫♪

Já nos Estados Unidos, no século 18 (estamos falando nos anos 1770 e poucos, por ali), populações vindas da Inglaterra trouxeram consigo a versão adulta das celebrações do Father Christmas. Nessa época, os jovens saíam pelas ruas das vilas em um cortejo com muita farra, bebendo o wassail e cantando canções populares. Os rapazes usavam enfeites de pinheiro, enquanto as moças usavam enfeites de azevinho.

Infelizmente, para a tristeza dos festeiros, os puritanos resolveram cortar o costume pela raiz: alegando que as festividades incentivavam o paganismo e o sexo desregrado, as celebrações do Velho do Natal foram proibidas.

Cem anos depois, os imigrantes holandeses trouxeram seu Sinterklaas, muito mais comportado, e a sociedade protestante americana estava pronta para aceitar o bom-velhinho de braços abertos. Juntando elementos das duas figuras, o nome foi americanizado e pegou de vez: Santa Claus.

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O Santa Claus se consolidou como símbolo absoluto da cultura natalina ocidental.

Refletindo a mentalidade laicista daquela nação que estava surgindo na América, o Santa Claus não se vale de elementos transcendentais, sejam cristãos ou pagãos. De bispo ou mago, ele passou a ser apenas um inventor generoso, vestido com roupas de frio seculares. Com o passar do tempo, mais e mais detalhes foram sendo criados e consolidados nos costumes noelinos, como seu trenó, as renas e até mesmo uma esposa.

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Neste cartão americano de 1919, o ex-bispo, agora casado, se despede da esposa para uma noite de trabalho árduo.

Essas características impulsionaram seu poder publicitário: desconectado de tradições, ele acabou sendo aceito por todos, em todos os lugares. E sendo de domínio público, foi abraçado pelas companhias daquele modelo empresarial nascente, o que acabou por levá-lo a todos os cantos do mundo, influenciando e até mesmo suplantando culturas locais em todos os continentes.

Por causa do sincretismo, juntei os nomes do Father Christmas e os do Santa Claus em uma tabela só:

País Nome do Papai Noel
Afeganistão Baba Chaghaloo
Albânia Babai i Krishtlindjeve
Alemanha Weinachtsmann
Andorra Pare Noel
Armênia Dzmer Papik (como o Ded Moroz)
Bélgica Kerstman
Bósnia Bozic Bata
Brasil Papai Noel
Bulgária Dyado Koleda
Croácia Djed Bozicnjak
Dinamarca Julemanden
Escócia Bodach na Nollaig
Eslovênia Bozicek
Espanha (Castela) Papá Noel
Espanha (Catalunha) Tio de Nadal (veja mais abaixo)
Espanha (Ilhas Baleares) Pare Nadal
Estados Unidos Santa Claus
Estônia Jouluvana
França Père Noël
Gales Sion Corn (o “Homem da Chaminé”)
Geórgia Tovlis Babua
Hungria Télapó
Irlanda Daidí na Nollag
Inglaterra Father Christmas
Itália Babbo Natale
Letônia Ziemassvetku Vecitis
Lituânia Kaledu Senelis
Macedônia Babagjyshi i vitit te ri
Polônia Gwiazdor
Portugal Pai Natal
Romênia Mos Craciun
Suécia Julgubben
Turquia Baba Noel

Uma curiosidade interessante é que nos países hispânicos da América Latina, ele é chamado de Papá Noel, assim como na Espanha. No Chile, porém, ele é chamado de Viejo Pascuero (“Velho da Páscoa”), porque nesse país, o tempo natalino é conhecido como Páscua de la Navidad, enquanto o verdadeiro tempo pascal é chamado de Páscua de la Resurrección.

Nos países insulares do Caribe, ele é chamado de Santa Clós, uma corruptela do nome norte-americano, mas costuma atender pelo apelido de Colacho.

Seja rico ou seja pobre… ♪♫♪

“Mas e aquele bode preto diabólico lá, o tal de Krampus?” – eu escuto você falando, lá do fundo da sala. Mas vocês são atrevidos, hein! Bem, vamos lá.

Como vocês já sabem, os costumes natalinos herdaram elementos da Caçada Selvagem de Odin, e muitas vezes o Bom Velhinho vem acompanhado de um cortejo de personagens, sejam eles rivais ou ajudantes. Como eles não são exatamente gift-bringers, vou deixar para falar deles em outro artigo (provavelmente no ano que vem!).

Entretanto, uma figura se destaca nessa categoria: o Belsnickel, ou “Nicolau Peludo”. Essa personagem misteriosa surgiu como um desses acompanhantes natalinos, que perseguem ou atrapalham o trabalho dos presenteadores. Com o passar do tempo, porém, ele evoluiu com a cultura local do povo das florestas do sul da Alemanha, se tornando, ele próprio, um gift-bringer.

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Esse ano não vai ter Krampus aqui no site. Eu acho.

O Peludo agrupa características físicas dos presenteadores que você acabou de conhecer: túnica longa, ar solene, barba comprida e uma bolsa de brinquedos. Contudo, ele também tem os elementos dos rivais comuns: cor escura nas vestimentas, comportamento ameaçador, e traz instrumentos assustadores, como um chicote ou galho para castigar as crianças mal-comportadas.

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O galho de pinheiro não é pra enfeitar.

As representações do Belsnickel começaram com a aparência bestial (e caprina) de figuras como o Krampus. Décadas depois, a cara feia passou a ser retratada apenas como uma máscara, e o corpo peludo como um casaco fechado de peles. Nos tempos atuais, graças à influência do Santa Claus americano, o Belsnickel vem, também, perdendo seus elementos de susto, e costuma ser representado como um Papai Noel franciscano: com um hábito castanho remendado.

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Essa fotografia foi tirada aqui no Brasil, onde ele é chamado de Pensinique, pelos descendentes de alemães do estado de Santa Catarina.

Sim, eu gosto muito de tabelas, então lá vai mais uma:

País Nome do Nicolau Peludo
Alemanha Belsnickel
Brasil Pensinique
Canadá Pelsnichol
Estados Unidos Bels-nickle
França e Luxemburgo Pelznickel

E no Oriente?

O intercâmbio cultural entre as duas metades dessa laranja azul, que é o mundo, vai muito além da canção natalina composta por John Lennon, interpretada pela Simone e que menciona os bombardeios contra Hiroshima e Nagasaki…

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Na Mongólia, o trenó do Ovliin é puxado por cavalos, animais nativos daquele país.

O gift-bringer mais antigo no Extremo Oriente é o Ovliin Ovoô, versão do Ded Moroz russo com trajes do norte da Mongólia. Mas o século 20 e suas guerras e dinâmicas comerciais levaram mais do que dinheiro e produtos de um lado para o outro, fazendo figuras muito interessantes surgirem nas culturas de olhos puxados.

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Com esse eu gostaria de tirar uma foto.

Na China, o folclore local possui uma figura muito interessante, chamada Lan Khoong, ou “Velho Gentil”, que é uma espécie de divindade ligada à boa sorte e às pequenas felicidades. Com a chegada do Santa Claus americano, as duas figuras se uniram, criando o Shengdan Laoren, que mistura os dois, trazendo características do Noel e vestes tradicionais chinesas.

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O Khoong representa as alegrias corriqueiras dos pequenos prazeres, gentilezas e sortes cotidianas.

Os chineses mais tradicionalistas, no interior do país, rejeitam a influência ocidental, representando-o vestido com roupas semelhantes às usadas pelos nobres da dinastia Han, de um vermelho muito vivo, alaranjado, e com detalhes e enfeites de ouro. Entretanto, mais ao sul e no litoral, ele aparece de maneira familiar para nós do lado de cá.

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Em Hong Kong, eles o chamam de Singdaan Loujan. Eu gosto como ele traz os presentes numa cesta de vime trançado.

Um detalhe interessante, e engraçado, é que os chineses não associam o Noel à época natalina, mas ao ato de dar e receber presentes. Assim, é comum vê-lo durante o ano todo, em cartões de aniversário e felicitações em geral.

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Quando juntos, os sete kami são representados num navio, para significar seu gosto pela viagem e mudanças.

Do outro lado do mar, no Japão, há figuras semelhantes relacionadas à sorte no folclore Shintô. Eles são os Shichifukujin, ou “Sete Deuses da Sorte”. Esses seres não são exatamente divindades, mas noragami, espíritos viajantes ou personificações de conceitos relacionados à sorte. O mais famoso entre essas figuras é chamado de Hotei ou Budai, associado à sorte nos negócios, à fartura e à prosperidade. Ele é muito popular aqui no Ocidente, sob a imagem de um homenzinho gordo e sorridente, segurando moedas.

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Tenho certeza que você já viu esse aqui em alguma loja ou na casa de alguém, por aí.

Somando esta figura com o Santa Claus, nasceu o Hoteiosho, que costuma ser representado de muitas maneiras, variando entre o gordinho tradicional e a versão idêntica ao americano. Ele também é chamado de Santa Kuroosu ou Santa-san.

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Eu acho muito interessante a troca étnica, de uma representação para outra.

A Terra do Sol Nascente foi, provavelmente, o país oriental em que a americanização foi mais forte, e isso é visível em diversos aspectos, mas principalmente no consumo. Por exemplo, se você for à casa de qualquer pessoa ou família que celebre o Natal, vocês vão cear numa mesa farta de… frango frito à moda americana!

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Ele também costuma ser chamado de Odzi-san.

Graças à publicidade intensa do KFC, que utiliza como logo um homem de cabelo e barba branca (chamado Colonel Sanders), o prato virou costume natalino nas áreas metropolitanas nipônicas, e filas quilométricas se formam nas noites finais de dezembro.

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O KFC é uma das franquias de fast-food de maior sucesso por lá.

Na Coréia do Sul, o Papai Noel assumiu a forma do Haraboji. Ele se veste de azul ou verde, evitando as cores rubras do regime norte-coreano. Por aquelas bandas o costume mais comum é presentear as pessoas com dinheiro., e cartões desejando sorte.

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Enquanto os sul-coreanos se divertem com as brincadeiras natalinas, os seus irmãos do norte são proibidos pelo governo de praticar o cristianismo.

Bem mais ao sul, nas águas do Oceano Pacífico, os povos da cultura maori, habitantes das ilhas quentes em torno da Austrália e da Nova Zelândia, também absorveram o Santa Claus com elementos do seu folclore particular. Lá, ele é chamado de Hana Koko, e usa roupas apropriadas ao verão do Hemisfério Sul.

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“Eu arrasei, eu já sei… De nada!” ♪♫♪

Pequenos notáveis

Falando em espíritos e divindades, os gift-bringers nos países escandinavos são descendentes (culturalmente falando) dos duendes e gnomos da mitologia nórdica. Eles são chamados de Yultomten ou “gnomos do Yule”. Um tomte costuma ser representado como um homenzinho de barba branca e chapéu vermelho.

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Os tomten gostam de morar em celeiros, porque usam a palha como matéria-prima para fabricar os presentes e outros utensílios.

Como existem muitas crianças, os nórdicos não acreditam que uma única pessoa pudesse entregar os presentes de todos. Então, há um presenteador para cada família. Eles são numerosos e também bagunceiros e temperamentais. O mesmo tomte presenteia as criança da sua família protegida, e prega peças nas crianças de uma família rival, roubando ou estragando presentes, dando nós em cabelos ou cadarços para provocar quedas.

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Neste cartão sueco, um fazendeiro corre atrás de um tomte que roubou seu feno.

Na Dinamarca, que é a parte continental da Escandinávia, os tomten são chamados de nissen, nome que se espalhou (até pela proximidade) para outras culturas, como a germânica e a francesa. Assim, surgiram os duendes dos contos de fadas, como nas obras de Andersen e dos Grimm (eles são chamados, no singular, de nisse ou nixie, nos originais, mas as traduções para inglês os definem como goblin ou gnome).

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Assim como aconteceu em todos os outros lugares, a contemporaneidade suavizou as características traiçoeiras dos gift-bringers nórdicos.

Já na Islândia, que é o país mais distante (e por isso, menos cristianizado), eles são chamados de Jolásveinar, “Os moleques do Yule”. Nessa região, eles são considerados os 13 filhos de uma jötunna (giganta de gelo) chamada Gryla. Aqui, eles visitam as crianças em dias específicos, e elas deixam sapatos ou meias com as comidas que cada tomte prefere (como os antigos faziam para agradar o cavalo de Odin na Caçada). Cada tomte vai embora em um dia também específico, e se a criança tiver deixado a oferenda correta, ele deixa um presente em troca.

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Os jolasveinar têm um gato mal-humorado de estimação. Quando eles voltam para sua casa em Jotunheim, a terra dos gigantes, eles levam algumas crianças mal-criadas para servir de comida ao bichano.

Foram as tradições dos yultomten que inspiraram os duendes e elfos ajudantes do Papai Noel, nas versões continentais.

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“Eu vou, eu vou…” ♪♫♪

Outras figuras do Natal, por aí afora

No extremo norte da Europa, no interior mais gelado dos países escandinavos, uma figura muito curiosa é quem traz os presentes no Natal: é o Joulupukki, o “Bode do Yule”. Traçando suas origens aos cultos pagãos nórdicos, o Bode do Natal surgiu na lenda de Thor, deus do trovão do povo viking. O barbudo enviava Tanngrisnir, seu bode branco de estimação, com uma bolsa de mantimentos para seus devotos conseguirem sobreviver ao inverno.

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Ele assimilou muitos traços de outras figuras, como o cajado e o cachimbo.

A cristianização pegou pesado com o Joulupukki, que era um bode, símbolo fortemente associado às religiões pagãs e aos cultos de fertilidade, além da relação (apenas iconográfica) com as representações do Diabo na Idade Média. Assim, ele deixou de ser um bode e passou a ser um homem acompanhado por um bode, do modo como São Nicolau é acompanhado por um cavalo ou jumentinho.

Contudo, nem a antropomorfização foi suficiente, e o Joulupukki acabou sendo ainda mais transformado, passando a ser acompanhado por uma rena, ficando virtualmente idêntico ao Papai Noel que conhecemos.

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Esse bode, na verdade, é um carneiro.

Descendo para terras mais quentes, na Galiza, um dos antigos reinos componentes da Espanha, que fica ao norte de Portugal, o presenteador é a figura de um carvoeiro, conhecido como Apalpador. Em alguns lugares, ele também é chamado de Tientapanzas, algo como o “Testador-de-panças”; ou ainda de Pandigueiro.

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Ele gosta de dar e receber nozes e castanhas, e é daí que vem nosso costume brasileiro de consumir estes alimentos no Natal.

Representado como um homem maltrapilho, de roupas remendadas, mas gentil e sorridente, ele tem esse nome porque apalpa, durante a noite, a barriga das crianças; para verificar se elas comeram direito, durante o ano. As que estiverem mais gordinhas são recompensadas com presentes, deixados em cima de sua barriga. Aos magrinhos, ele deixa um pedaço de carvão (para acender mais o fogão e cozinhar? Talvez…).

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Sai pra lá, cara.

Em outro reino espanhol, nas Astúrias, que fica no litoral norte do país, o presenteador é um pescador chamado de El Angulero, ou “o Peixeiro”. Brincalhão, e vestindo uma longa capa amarela de chuva, ele traz os presentes do mar, em um barco mágico que aparece do meio da neblina, sinalizado pela luz de um lampião bruxuleante. A barba castanha e o riso forte são a marca que diferencia o Angulero de outros gift-bringers.

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Tomara que ele não me traga um bacalhau.

Já em Navarra, o reino espanhol localizado na fronteira com a França, o presenteador é um homem chamado Olentzero. Essa figura tem sua origem no folclore basco (que é uma cultura tão peculiar e interessante, que merecia um artigo só para falar disso).

O nome do Olentzero é uma palavra do idioma euskara, mas não tem tradução aparente. Ele é um gigante que trabalha nas minas, mas que sai todos os anos das montanhas onde vive para trazer presentes para as crianças e avisar a todos que a segunda vinda de Cristo está próxima.

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Apesar do tamanho amedontrador, ele tem um comportamento gentil.

Ele é representado como um gigante, carregando uma sacola de presentes em uma mão e uma lanterna na outra. Ele veste um colete de lã e lenço no pescoço, usa calças de tecido escuro; e está sempre fumando. Para simular seu tamanho gigante, os bascos e os navarros fazem grandes bonecos do Olentzero para as festividades de Natal, e essa foi a origem dos bonecões que aparecem no folclore do nordeste brasileiro.

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Os bonecos do Olentzero me lembram a iconografia tradicional gaúcha. Mas não posso afirmar que exista relação entre as duas culturas.

No litoral leste da Espanha, na região da Catalunha, uma figura ainda mais curiosa povoa as mentes das crianças ibéricas: o Tió de Nadal. O nome pode se referir ao próprio Papai Noel, mas as versões mais tradicionais o representam como um boneco feito de um toco de madeira (tió, na lingua catalã). O toco é decorado com perninhas, olhos, e roupas natalinas. No reino de Aragão, outra região espanhola, ele é chamado de Tizón de Nadal, no dialeto local, o aragonês.

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O Toco é uma espécie de cofre para doces e moedas. Na Provença, no sul da França, ele é chamado de Soc de Nadal.

Durante o tempo do Advento, os adultos e as próprias crianças vão “alimentando” o Toco, colocando um pouco de doces e outros presentes em seu interior, até o dia do Natal, ocasião em que ele é posto para defecar. Sim, pode rir.

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A prática de quebrar o Toco acabou se transformando nas pinãtas das culturas da América Central, e outros tipos de balões com doces dentro.

As crianças ficam em volta do toco, usando galhos ou pedaços de pau, e batem para quebrá-lo para que ele libere os doces e presentes. Tudo isso ao som de cantigas, sendo a principal uma que diz: “Caga tió, caga torró/ avellanes i mató/ si no cagues bé/ et te daré/ un cop de bastó”

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Cartões de Natal com o Toco são comuns em cidades catalãs, como Barcelona.

No fronteira entre México e Estados Unidos, nos territórios onde a cultura é um híbrido entre o que foi trazido pelos colonizadores espanhóis, o que era praticado pelos nativos pré-colombianos e o que foi difundido pela influência estadunidense, surgiu outra figura muito peculiar, o Pancho Claus.

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Pancho faz muito sucesso nas resistências latinas. Essa fotografia foi tirada no Texas.

Vestindo um poncho colorido com desenhos nahuatl, e trazendo à cabeça um imenso sombrero vermelho, o presenteador mexicano vem do sul, na crença das crianças. Com a força de movimentos de preservação das tradições culturais dos latinoamericanos, o Pancho Claus foi ficando cada vez mais popular, e pode ser encontrado por todas as partes da América do Norte e da América Central.

De volta à Europa, no interior da Itália, temos outra figura muito rara, conhecida como La Befana. Essa presenteadora é uma feiticeira que voa numa vassoura (ou num galho de árvore comprido), entregando presentes para as crianças no dia da Epifania (6 de janeiro, que costumamos chamar aqui de “Dia de Reis”).

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Note a associação com a iconografia cristã.

O nome da Befana é uma corruptela do próprio nome do dia sagrado em que ela age. A crença é de que ela é semelhante aos reis-magos, uma autoridade de antigas religiões que decide reverenciar Jesus como o verdadeiro salvador da humanidade.

A origem dessa personagem está no culto de Estrênia, uma deusa romana benevolente que percorria os campos e florestas abençoando as pessoas com boas ideias, comida e remédios. Esse arquétipo acabou influenciando a cultura e a literatura sob a forma de magas ou mestras sábias e bondosas.

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Existem contos muito interessantes dos encontros da Baboushka com os reis-magos.

Imigrantes italianos levaram a Befana para outros cantos, e em cada lugar ela foi sincretizada com lendas dos folclores locais. Na Espanha, no reino de León, ela é chamada de La Vieja (“A Velha”), enquanto na Rússia, ela é conhecida como Baboushka (“Vovó”).

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Assim como em outros lugares, grupos tradicionalistas leoneses se apegam à Vieja como forma de proteção da cultura local.

No mundo islâmico, o Natal é celebrado muito timidamente, mesmo porque, em muitos países, não há interesse por parte da população, ou não há permissão por parte dos governos teocráticos. Contudo a influência massiva do costume ocidental pode ser sentida, também, pelas bandas de lá.

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No Cairo e em Jerusalém, os raros Papais Noéis costumam chegar montados em dromedários.

Nas comunidades cristãs coptas, siríacas e caldéias, o Natal é celebrado de maneira discreta e litúrgica, com a participação na missa e nos cultos domésticos. Um rito muito bonito é o que envolve o acendimento de uma pira, representando a grande luz que é o nascimento de Cristo.

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Sediada no Iraque, a igreja caldéia é o braço babilônico do cristianismo.

Nos países com melhores relações com o Ocidente, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, é possível encontrar iluminações natalinas semelhantes às nossas, além de árvores enfeitadas naturais e artificiais. Papais Noéis e presépios são raros, entretanto.

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Pinheiros e palmeiras dividem o cenário nas celebrações natalinas em Dubai.

A única provável exceção é uma figura folclórica iraniana, que surge próximo ao equinócio da primavera (por volta de 20 de março), no ano novo persa. Nesta época, Amu Nowruz, o “Tio do Ano Novo”, atravessa o deserto com presentes para todos, enquanto segue sua jornada para encontrar sua amada esposa, Naneh Sarma (a “Vovó Neve”). Ele representa a primavera, enquanto ela representa o inverno, e o equinócio é o unico momento do ano em que estas estações se tocam.

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Os iranianos também trocam cartões de ano novo, ilustrados com desenhos do Amu Nowruz.

Ele é representado como um mercador com roupas coloridas e rosadas, um grande sorriso e comportamento muito generoso. Além disso, Amu Nowruz é acompanhado pelo esperto e divertido Hajji Firuz (o “Mestre Safo”, ou “Senhor Sabichão”), um homem negro que fala por enigmas e prega peças, e representa o verão.

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No Irã, o blackface ainda não é malvisto, então as pessoas vestidas como Hajji Firuz são muito comuns, brincando com as crianças nos desfiles.

Ouro, incenso e mirra

Nem todos os presenteadores são apenas folclóricos ou comerciais. Assim como acontece com São Nicolau, há outras tradições natalinas associadas a santos cristãos. No sul da Itália, na Lombardia, no Vêneto e principalmente na ilha da Sicília, quem traz os presentes para as crianças é a jovem Santa Lúcia, ou Luzia, como também é conhecida no Brasil.

A moça foi martirizada no século 2, quando os imperadores romanos perseguiam os cristãos fervorosos. A devoção a ela ficou muito popular nos tempos do proto-cristianismo, e se espalhou por toda a Europa. Aqui no Brasil, ela é mais reconhecida por seus atributos religiosos: uma folha de palma e um prato com dois olhos. Entretanto outro atributo importante à sua iconografia visual é a vela acesa, derivada de seu nome em latim Lucis, que significa “luz”, e representa a luz de Cristo, que ela porta com sua santidade.

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O manto vermelho é um sinal visível de que foi assassinada pela fé.

Antes da reforma do calendário litúrgico, o dia de Santa Luzia era comemorado em 21 de dezembro, data do solstício de inverno e ponto focal das celebrações natalinas de todas as culturas, como vimos acima. Foi por isso que ela começou a ser considerada uma presenteadora.

Mesmo depois da reforma que passou sua celebração para o dia 13 de dezembro, o costume permanece em muitos lugares. As crianças italianas deixam café para Santa Lúcia (ela gosta, porque tem que trabalhar durante à noite), cenoura para seu burrinho que carrega os presentes, e um pouco de vinho para seu ajudante Castaldo (ele sente muito frio). Se alguém tentar espiar em quanto ela deixa os presentes, Luzia joga carvão e cinzas na cara deles!

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Os presenteadores que andam com jumentinhos foram influenciados pela iconografia bíblica.

Nos países eslavos que ficam do outro lado do Mar Adriático, como a Croácia, as crianças são ensinadas a plantar sementes de trigo em volta de um arranjo feito com as plantas adveniais. Ao longo das semanas, com a observância do costume, os brotos germinam e ficam grandinhos quando chega o Natal, sendo então cortados e deixados debaixo da árvore, como alimento para o burro de Luzia.

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O trigo e as frutas representam a fertilidade, mesmo no meio do inverno estéril e gelado.

Já nos países escandinavos, como a Suécia, a influência italiana também levou a devoção por Santa Luzia, e muitas comemorações locais são feitas nesta época, em homenagem a ela. Uma menina é escolhida para representar a santa, e eles a vestem com uma túnica branca, amarrada com uma fita vermelha (sinal do martírio). Ela é coroada com as velas acesas do Advento, e lidera um cortejo de meninas vestidas de branco, segurando cada uma vela acesa, também.

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As celebrações são maravilhosas.

Os meninos, enquanto isso, participam vestidos de stijarngossar, algo como “filhos das estrelas”, usando túnicas semelhantes, e chapéus cônicos decorados com estrelas. Os menores, às vezes, ficam vestidos de tomten (como você viu acima), ou então de homenzinhos de gengibre. Uma iguaria típica desse evento é o Lussekatt, um bolo com especiarias.

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Este cartão de Natal faz parte da mesma coleção daquele lá em cima, do Joulupukki. Repare o bolo nas mãos da santa.

No Mediterrâneo e no Egeu, a cultura helênica e bizantina ensina que as crianças esperam pelos presentes no primeiro dia de janeiro, quando eles são trazidos por São Basílio, conhecido na Grécia, Chipre e Turquia como Hágios Vasilis. Neste dia, serve-se um bolo tradicional chamado de vasilopita, que deve ser saboreado com cuidado, porque tem uma moeda dentro!

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Ele também usa o omóforo sobre a casula, assim como São Nicolau.

São Basílio de Cesaréia é um Doutor da Igreja, um título dado aos santos que consolidaram as bases da Tradição cristã. Seus escritos formam uma parte muito importante das noções teológicas que todos os ramos cristãos seguem, nos dias de hoje. Seu costume de evangelizar presenteando (análogo ao comportamento generoso de São Nicolau) acabou persistindo na cultura grega, de forma que ele é muitas vezes preferido, em oposição a Nicolau ou o Noel americano.

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Ao invés de brinquedos, Basílio costuma trazer comida e livros.

Trajando vestes clericais e uma casula escura de tons azuis ou esverdeados, Basílio pode ser reconhecido e diferenciado por sua longa barba negra, marca de sua vida monástica. No dia de sua celebração, as famílias se reúnem para cear e festejar, além de praticar obras de caridade com os mais pobres, doando comida e roupas.

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Este Basílio de porcelana já está praticamente “noelizado”.

Nos tempos mais recentes, sua figura também vem sendo sincretizada ou suplantada pelo Santa Claus, de forma que fica cada vez mais raro ver o santo por aí.

Completando o ciclo religioso de figuras presenteadoras, estão os Reis-Magos, figuras misteriosas que são mencionadas superficialmente na narrativa bíblica do Natal cristão. Apesar do texto não citar seus nomes, origens e quantidade, a tradição tratou de fixá-los ainda nos primeiros séculos da Cristandade.

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Este mosaico bizantino do século 3 ou 4 já mostra os Reis-Magos em número de três, e com os nomes que se consolidaram, mostrando que havia, sim, fontes mais antigas que os textos alexandrinos que já citavam esta tradição. Note que eles estão usando barretes frígios, o mesmo chapéu que era utilizado pelo deus Mitra, e também por Marianne na Efígie da República.

Como são três presentes, o número de três sábios foi rapidamente aceito, sendo que suas referências mais antigas remontam a um texto chamado Excerpta Latina Barbari, escrito em Alexandria no século 5, e referenciando fontes muito mais antigas, mas que se perderam.

A palavra grega para “sábio” é mágos, que São Jerônimo traduziu como magus, em latim. Porém, traduções mais modernas evitam associar o termo à magia propriamente dita, para evitar confusões com as práticas condenadas pelas denominações cristãs.

Já o título de “reis” se deve aos presentes caros que eles trouxeram, bem como o prestígio que tinham, para serem aceitos na presença do rei Herodes. Além disso, o status real dos três visitantes confirmaria a profecia presente no Salmo 72, que diz: “Todos os reis hão de adorá-Lo”.

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Eles representam as culturas pagãs dos três velhos continentes: um para a Europa, um para a Ásia e um para a África. Por isso são representados em etnias diferentes.

Assim, Caspar (ou Gaspar, por aqui), Melquior e Baltazar ficaram famosos da maneira como conhecemos hoje.

No tempo natalino, os Reis-Magos são especialmente populares no mundo ibérico, se espalhando no reino de Castela, no coração da Espanha, e também em Portugal, de onde vieram, por meio da colonização na Renascença, para todo o continente americano.

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Os cartões de Natal dos Reis-Magos são sempre muito coloridos e vibrantes.

Eles vêm de seus reinos montados em camelos, para visitar as crianças no dia da Epifania. No dia anterior, 5 de janeiro, as crianças cortam o capim dos jardins e podam as árvores, deixando as folhas verdes frescas debaixo de suas camas, para alimentar os camelos, e encontram os presentes na manhã seguinte, em meio ao que sobrou.

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Sim, na Espanha tem Reis-Magos pra tirar foto em shopping. Muito mais legal!

A iguaria típica desse dia é o Roscón de los Reyes, ou o bolo-de-reis, que é um bolo ou pão doce, em formato circular e furado no meio. Dentro do bolo, separados, estão um bonequinho de um rei-mago e também uma fava. O conviva que achar o bonequinho é coroado com um enfeite de papel, e ganha um presente, enquanto quem achar a fava tem que pagar uma prenda, ou fica devendo um favor ao que ganhou a coroa.

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As crianças germânicas vestidas de Reis-Magos são chamadas de sternsingers, ou “Cantores da Estrela”. Eles carregam estrelas representando o cometa que sinalizou o caminho para os sábios encontrarem Jesus.

Na Europa central católica, em regiões da Áustria, Polônia, Alemanha e Suíça, os Três Reis também são muito cultuados nesse tempo natalino. As famílias marcam as portas de suas casas com giz, escrevendo a marca C+M+B, formada pelas iniciais dos Reis-Magos, mas como um monograma da expressão em latim: Christus Mansionem Benedicat, que significa “Que Cristo abençoe esta casa”. Nestas regiões, sobrevive o costume medieval de encenar peças de teatro populares nas ruas, e as crianças se fantasiam de personagens bíblicos, natalinos e adveniais, pedindo doces nas casas e cantando canções relacionadas às festividades.

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Marcar as portas é um costume abraâmico muito antigo, que tem suas origens na Idade Antiga. Até hoje, judeus, cristãos e islâmicos têm alguns hábitos descendentes dessa prática.

Pra não perdermos o costume, confira a tabela:

País Nome dos Três
Andorra Els Tres Reis
Espanha Los Tres Reyes Magos
Eslovênia Sveti trije kralji
Portugal Três Reis-Magos

O verdadeiro Aniversariante

Depois de analisarmos as figuras que nasceram do folclore, do comércio e da religião, eu preferi deixar o presenteador mais importante e significativo para o final.

No século 16, o monge agostiniano Martinho Lutero começou um movimento que mudaria radicalmente toda a história do mundo, o Protestantismo. As visões críticas que ele interpôs ao cristianismo histórico, e a Reforma que ele propôs, alteraram para sempre o entendimento sobre os ensinamentos de Jesus Cristo, e também o comportamento dos fiéis, de todos os ramos.

Por isso, no berço das ideias protestantes, já naquela época, o povo germânico começou a tentar erradicar as figuras pagãs e católicas dos costumes populares de Natal. Assim, as crianças alemãs começaram as esperar os presentes sendo entregues pelo próprio Menino Jesus, ou Christkindl, em alemão.

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A iconografia do Christkindl variou muito através dos séculos, conforme os hábitos dos alemães.

Ele chega silencioso na noite da Véspera de Natal, vestindo uma túnica branca com detalhes dourados, que são as cores litúrgicas deste tempo. As representações mais antigas traziam o Menino montando num burrinho, mas ele também costuma ser desenhado com asas, como as de um anjo.

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É possível encontrar cartões como este no mundo inteiro.

As idas e vindas da religiosidade fizeram com que o costume de esperar o Menino Jesus como presenteador fosse adotado também pelos católicos, além de se espalhar conforme a influência dos protestantes era exportada para novos lugares. Dessa maneira, ele é cultuado em vários lugares da Europa, e também das Américas.

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O contato com a globalização cultural também “noelizou” o Menino Jesus, que passou a usar vestes semelhantes às do Santa Claus.

Nos dias atuais, com os processos de secularização, e a presença massiva do Papai Noel nas propagandas, o Christkind permanece assimilado de uma maneira sincrética, e é possível ver os personagens coexistindo, aqui e ali. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem regiões interioranas onde o Santa Claus é chamado de Kriss Kringle, uma corruptela do nome alemão do Menino Jesus.

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Este desenho ilustra um Calendário do Advento, em que pequenos presentes ou mensagens são abertos a cada dia (note as marcações e aberturas dos dias).

E uma última tabela:

País Nome da Criança Santa
Alemanha Chriskindl
Bélgica Le Petit Jesus
Croácia Mali Isús
Eslovênia Jezuscek
Espanha El Niño Diós ou Niño Jesús
França Le Petit Jesus
Hungria Jezuska
Itália Gesú Bambino
Liechtenstein Christkind
Luxemburgo Christkind
Polônia Dzieciatko
Portugal Menino Jesus
República Tcheca Jezisek
Romênia Kis Jezus
Suíça Christkind ou Gesú Bambino

Foi uma jornada imensa, eu sei. Imagino que você deva estar muito cansado com tantas informações. Mas eu gostaria de agradecer pela sua companhia, e espero que você tenha gostado de me acompanhar por tantos povos e países, conhecendo as culturas das pessoas do nosso mundo. Esses conhecimentos (e as imagens) ficam como um presente meu, para você e seus amigos.

Se você gostou de ler essas curiosidades sobre diversas tradições mundiais, peço que comente ali abaixo, dividindo suas impressões ou dúvidas. Fico muito feliz de poder interagir com os meus leitores e amigos.

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Joyeux Noël!

Mais uma vez, deixo a você meus votos de um Feliz Natal, e espero que possamos nos encontrar de novo!

2 comentários Adicione o seu

  1. Philippe disse:

    Adorei a expressão gift-bringers. Interessante a quantidade de personagens envolvidos com essa expressão. Também gostei do pancho-claus e do cuidado de não chamar Hotei de Buda 🙂

    Curtido por 1 pessoa

    1. Luigi Gomes disse:

      Sim, praticamente todas as culturas manifestaram o conceito de alguma maneira.

      Obrigado pelo carinho!

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